terça-feira, 10 de julho de 2012

HISTORIOGRAFIA, MITO POLÍTICO E CONSTRUÇÃO DE MEMÓRIAS


Morreu Ronaldo Cunha Lima, ex-vereador e prefeito de Campina Grande, ex-deputado federal e senador e ex-governador da Paraíba. Sua morte tem sido bastante comentada, compartilhada e discutida no facebook e em outras redes sociais. Talvez, no caso da Paraíba, ele esteja inaugurando o lugar na mídia digital no tocante à fabricação de um mito político, já incensado e auratizado por vários “clics” de diversos internautas. De tal modo que, a espetacularização da morte, outrora fabricada, sobretudo, pelo rádio e pela TV, nessa sociedade hipermoderna passa a contar com a grande contribuição da rede mundial de computadores.
A morte de Ronaldo, notadamente o processo de construção míticajá em curso, me fez escrever essas linhas a fim de sintetizar algumas ideias mais gerais e históricas a respeito da fabricação dos “heróis” e seus usos políticos e historiográficos.
Um primeiro aspecto a se chamar atenção consiste no fato de que a fabricação de mitos políticos, conforme nos mostra Raoul Girardet, faz parte da longa duração temporal da História. Jamais caberia, num artigo tão breve, fazer uma análise nessas dimensões de recorte temporal e espacial. Portanto, vou optar por mencionar apenas algumas especificidades da História do Brasil. Quando surgiu o Estado Nacional Brasileiro, após a separação de Portugal, as elites políticas e culturais trataram de modelar o mito D. Pedro I na busca de legitimidade de um projeto de “Independência” que defendia o latifúndio e a escravidão; quando veio a República, conforme nos mostra José Murilo de Carvalho, procurou-se silenciar a memória do Império ao mesmo tempo em que se fabricava o mito Tiradentes para legitimar o novo regime que surgiu e veio para beneficiar grandes fazendeiros de café, sobretudo; quando estourou o Movimento de 1930, a legitimidade da tomada do poder pela Aliança Liberal foi feita em cima do sangue de João Pessoa, que virou “santo” apropriado pelo e para um projeto de Estado varguista, ditatorial, excludente e industrializante.
E por aí vai. O PMDB ainda hoje se apoia no “mito democrático” de Ulisses Guimarães; o PTB faz toda sua propaganda política sempre manipulando a construção de um imaginário em torno dos “mitos” Getúlio Vargas e Leonel Brizola; o PSDB vive lembrando e “heroicizando” Mário Covas; o PT tem construído um “herói” vivo, o Lula retirante e grevista que “mudou o Brasil”. Aliás, a dita esquerda também construiu seus mitos, como Stálin, Mao Tsé-Tung, Fidel-Guevara e tantos outros defendidos por intelectuais e políticos ligados aos projetos revolucionários do “Breve Século XX”.
Pelos municípios afora, esse processo de heroicização e mitificação de políticos e militares, também se faz bastante evidente, contando com a especificidade dos localismos. Historiadores (de vertentes teóricas diversas) e herdeiros da tão conhecida política familiar vivem procurando narrar sobre o “fundador” da cidade e seus sujeitos “iluminados” que “conscientemente” têm feito a história do lugar, com destaque para a lista dos prefeitos, juízes, promotores e padres, excluindo aqueles que não se encaixam nessa concepção Iluminista de sujeito histórico. Monumentos, poesias, livros, festas, comemorações, como nos ensina Pierre Nora, são lugares de memória, de uma memória oficial. Nesse particular, cada político e cada Partido escolhem seu “herói” a celebrar, mas sempre buscando legitimidade política. Nesse ano de eleições municipais, isso será visivelmente impregnado como forma de capital político/simbólico. Quem concorre às prefeituras, além dos votos, ou em função deles, vai buscar o pai, o avô, o tio, a mãe, de dentro do túmulo e do sossego dos mortos para virar bandeira de campanha em favor de uma cultura política clientelista, personalista, nepotista e corrupta. Ou não seria esse o meu país?
Nesse particular, ouvi em um programa de debate político em rede de televisão, uma discussão a respeito das candidaturas à prefeitura de Campina Grande, comentários sobre o potencial que poderia ser capitalizado por Romero Rodrigues/ Ronaldo Cunha Lima Filho no bojo dos problemas de saúde de Ronaldo Cunha Lima. Imagina agora, depois da sua morte, o que será incrementado a esse debate. Logicamente, Daniela Ribeiro se legitima na tradição de Enivaldo, Tatiana Medeiros, candidata do atual prefeito pode utilizar o nome de Vital do Rego assim como Ronaldo pai poderá ser símbolo importante para Ronaldo Filho. Disso tudo o que me desconforta é a forma como se analisa e participa-se da política, apenas no âmbito da paixão. Ora, a paixão e a emoção fazem parte da política, mas não podemos deixar de ser também racionais, críticos e autocríticos, senão a paixão pode virar doença, cegueira, como em casosdo amores, daqueles que quanto mais nos magoam e fazem mal, mas eu corro atrás, alucinado. Temos sentimentos e não conseguimos nos livrar deles, mas não votarei mais em ninguém apenas movido por eles. Ou não devemos mais cobrar projetos sociais e culturais? Vamos votar só por conta da cor, da música, da morte ou do teatro do horário eleitoral? É por essas e outras, que temos tantos malufes, cachoeiras e sarneys nesse país que Lima Barreto, apropriadamente, denominou, alegoricamente, de “País das Bruzundangas”.
Um segundo aspecto que gostaria de destacar é a relação estabelecida entre historiadores e a sociedade englobante e complexa. Nas Universidades, atualmente, tenho visto uma gama de historiadores criticarem a Escola Metódica, chamando-a de “velha história” e a Escola Marxista, chamando-a de “ultrapassada”. Critica-se a primeira por suas concepções de História, fonte histórica, tempo histórico e sujeitos da Histórica, para os ditos da “Nova História”, defensores do Paradigma Moderno que centrou no modelo homem, livre, cristão, branco e heterossexual, os chamados “grandes vultos”. Critica-se a segunda, por achar que ela caiu juntamente com o Muro de Berlim e os projetos socialistas e que tal modelo teórico centra apenas na luta de classes e nos Modos de Produção, algo típico de historiadores “dinossauros” dos anos 1980 para trás.
De uma coisa é certa: os metódicos sempre foram sistêmicos assumidos, escreviam/escrevem a História-narrativa coerentemente com o que defendem fora do mundo das letras. Os marxistas, pelas mais variadas (e desconhecidas, por alguns historiadores) vertentes, foram críticos ao sistema Capitalista e ao Estado Burguês da Modernidade. Lutaram por uma revolução esquerdizante (com modelos variados); alguns, ainda hoje, mantêm a coerência com a criticidade e vivem defendendo uma cidadania plena contra a Globalização e a sociedade de consumo. Tantos outros historiadores da “Nova História” (sei que estou generalizando na expressão) têm atuado para fora dos muros das universidades, como tanto sonhou o grande sociólogo Pierre Bourdieu. Na linha da cidadania cultural, militando conjuntamente com projetos sociais pertencentes as mais variadas identidades como camponeses, quilombolas, indígenas, mulheres, gays, lésbicas, prostitutas, velhos, crianças, negros, umbandistas… Outros, porém, vivem trancados nas universidades funcionando na lógica reprodutivista e quantitativista da CAPES e dos Programas de Pós Graduação, vivendo, exclusivamente da mercantilização do conhecimento.
O meu questionamento é o seguinte: não há incoerência entre você dizer fazer uma Historiografia “NOVA” e atuar em sociedade defendendo e apoiando projetos conservadores e excludentes? No meu modo de ver, acaba caindo numa contradição, às vezes, não assumida, narra de modo “NOVO” para viver apoiando o status quo vigente, tal qual fazem os metódicos. Aqui, a “NOVA”e a “VELHA” historiografia se abraçam e se reencontram, divergindo apenas nos estilos da escrita da História.
Por tudo isso, defendo a posição do historiador engajado em projetos ligados aos movimentos sociais e as demandas dos marginalizados da História-experiência e da História-narrada. Nesse particular, é na dupla de filósofos Walter Benjamin e Paul Ricoeurem quem vou buscar inspiração para ter coerência e compromisso entre a narrativa e a vida. Benjamin escreveu as Teses sobre História para defender um materialismo histórico feito a contrapelo, mas com o compromisso de narrar o passado nos seus escombros de projetos impedidos e/ou não realizados, para a tarefa da “redenção” da história no presente-futuro.
Quanto a Paul Ricoeur, talvez mereça, a propósito do tema desse artigo, um parágrafo a mais. Na magistral obra Tempo e Narrativa, ele nos mostra o quanto a memória oficial e os “mitos” políticos e militares estão comprometidos com projetos dos vencedores, realizados à custa da exclusão e da tortura. Sendo assim, afirma ele, é pelo horror como o negativo da admiração das comemorações oficiais que temos que nos mover, pelo não esquecimento na Memória e na História comprometida com a ética humana. É preciso ser afetado pelo passado para a construção melhor de um presente-futuro, é necessário articularmos espaço de experiência com horizontes de expectativas, pois “é no presente que o espaço de experiência pode se ampliar ou se encolher”. Para Ricoeur, o maior dano que a história escrita causa a história efetiva é não está a serviço da vida, e apoiado em Nietzsche, afirma que a História Monumental veio ajudar os fortes a dominar o passado e criar a grandeza para a mumificação de um passado na história antiquaria; e na contraposição nitzscheana afirma que para servir à vida, outro tipo de história é preciso.
Por essas reflexões filosóficas, me coloco no lugar de quem não constrói ou defende “grandes heróis”, pois isso é se colocar do lado dos vencedores da História e meu compromisso é com o que está no contrapelobenjaminiano. Por que choramos Ronaldo Cunha Lima e tantos outros políticos e militares e não vamos inaugurar o Memorial das Ligas Camponesas no Centenário de João Pedro Teixeira (antes que me questionem, não o trato como herói, mas como sujeito)? Por que não se chora, nem se emociona com a morte das Margaridas e Chicos Mendes do Campo? Com morte de índios e camponeses sem terra? Com a violência contra “homossexuais” e mulheres? Por que não chorar o racismo e a corrupção? Por que não se lamenta as tantas pessoas que morrem de fome, cotidianamente, no campo e nas favelas e subúrbios denosso país? Por que não choramos e lamentamos as pessoas que morrem nos corredores dos hospitais públicos por falta de atendimento e serviços necessários? Por que não se entristecer e se enlutar com a situação das escolas públicas desse país? Ou os “mitos políticos”, que tanto choramos, não têm responsabilidades nisso?
Como diria Michel de Certeau, depende do lugar socialde cada historiador. Eu tenho plena convicção do lugar de onde falo e atuo em sociedade. Minhas lágrimas escorrem pelo olhar do horror, pois como ensaia Ricoeur, não esquecer é a motivação ética última da história das vítimas.

texto de Luciano Queiroz (doutorando na UFPE)

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