quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Entre o Movimento Passe Livre e “Correio Verdade”: prefiro viver das lições políticas de Steve Bantu Biko e dos mártires da Revolta dos Búzios



  Conheci este percussionista, capoeirista da Escola de Capoeira Afro Nagô e integrante do Grupo Maracagrande na Universidade Estadual da Paraíba quando estava para terminar meu Curso de Licenciatura Plena em História, na UEPB. Conheci o professor de História Williams  Cabral usando cabelo black power, tranças africanas e dreadlocks. Percebemos no rapaz um orgulho de ostentar pelas ruas de Campina Grande a estética africana e isso sempre me chamou atenção, pois aqui na nossa cidade poucos são os negros e negras que assumem sua negritude com orgulho. A África que fez e ainda deve fazer literalmente a cabeça desse malungu que gosta de viver na “felicidade guerreira” das alfaias do maracatu, também deu sua contribuição à luta contra o racismo no campo acadêmico, tendo em vista que Williams fez um artigo sobre a Comunidade Quilombola do Grilo, uma comunidade que fica localizada no município do Riaçhão do Bacamarte. Quem quiser acessar esse trabalho acadêmico é só pesquisar no blog quilombos da Paraíba.
Este educador ainda é um dos idealizadores do projeto social e cultural Biblioteca Comunitária do Tambor. Olhando para as fotos do projeto podemos notar o compromisso que ele tem com a formação pedagógica de crianças pobres e adolescentes do Bairro do Tambor. Foi este historiador o reponsável pela divulgação da minha produção textual no estado da Paraíba, pois, enquanto meus textos eram divulgados em Salvador, São Paulo e em outros estados do Brasil. Na Paraíba, apenas o blog  livros do tambor tem aberto seus espaços de comunicação para que eu possa publicar minhas ideias contra o racismo e socializar, assim, com o grande público meus textos que também mostram a importância de um Abdias Nascimento e de João Cândido para a história do povo brasileiro, assim como denunciam o   genocídio da juventude negra na Paraíba.   
Acredito que foi dessa forma que tudo começou quando Williams deve ter percebido o valor social e intelectual dos meus textos e que essa mesma produção textual não era valorizada por aqui. Acho que foi por essa razão que o joven professor me pediu para fazer uma pequena análise de um texto de sua autoria, o qual pode ser lido no blog livros do tambor, intitulado de Realidade Cruel. Esse texto que merece ser divulgado, em primeiro lugar, parece e muito com as ideias que eu defendo há mais de 22 anos no Movimento Negro de Campina Grande, visto que em seu conteúdo há toda uma crítica forte e direcionada aos produtores do “Correio Verdade,”programa veiculado pelo sistema correio de comunicação que se especializou em estigmatizar diariamente o negro pobre da periferia como um ser potencialmente criminoso.
Basta olharmos para o tratamento humilhante que esse programa  faz ao entrevistar nossa juventude negra, parda e pobre para percebermos as violações dos direitos humanos e que isso faz parte do ideário dos que defendem a redução da maioridade penal, além de contribuir para a construção de todo um imaginário preconceituoso em que o joven negro e pobre tem sempre a sua imagem exposta  de forma  totalmente degradante, negativa e estereotipada. Nesse contexto, o jovem afrodescendente é sempre a principal vítima do estereótipo racista construído pelas elites dominantes, as quais  sempre quiseram  rotular nossos jovens negros, marginalizados e pobres da periferia como sujeitos sociais  “ violentos e bandidos” para justificar os crimes, mortes, prisões e torturas contra essa mesma juventude que vive abandonada nas periferias e centros urbanos, por esse sistema capitalista injusto, racista e opressor.
 Assim sendo, diante desse quadro sócio-racial, somos tratados por essa sociedade excludente como seres humanos descartáveis desde o 13 de maio de 1888 quando fomos jogados nas favelas, becos, palafitas e morros sem direito a quase nada em termos de cidadania. Abdias Nascimento do alto de sua sábia intelectualidade  chamava isso de genocídio o que as elites racistas fizeram e fazem com o povo negro no pós- abolição. Já  o poeta campinense Arnaldo França Xavier fez um caligrama, no ano de 1988, em forma de cruz para representar o golpe final que o projeto conservador abolicionista deu no nosso povo negro. Pesquisem a vida do poeta, teatrólogo, compositor e escritor Arnaldo França Xavier e vocês leitores vão entender o que eu quero lhes dizer, visto que toda essa história tem tudo a  ver Williams com os argumentos do seu texto quando você diz que  a propaganda do "boy doido" foi deixada de lado, pelo fato de estimular a criação de "jovens sem perspectiva social em  meros delinquentes da periferia", o que concordo plenamente.
Diante dessa realidade, é pura obviedade sociológica dizer que nossos jovens negros são as vítimas preferenciais da violência urbana como você mostrou no gráfico. Entretanto, você deixou de enfatizar que o racismo cruel, desumano e estrutural é o principal vetor de produção e reprodução dessa violência contra a população negra. Poderia, assim, ter sido mais contundente na denúncia dessa matança de jovens negros como eu faço nas minhas entrevistas e palestras em Campina Grande. É o racismo sistêmico responsável pela distribuição injusta dos recursos que nos condena a viver numa eterna cidadania de segunda classe, sem que a sociedade paraibana e o programa “Correio Verdade” se incomodem com a morte de  tantos jovens negros nas periferias da Paraíba. Veja, caro amigo e meus leitores, que as balas de borracha dos policiais contra o Movimento Passe Livre  chama atenção de todos. O negro pobre sofre é com bala de verdade nas favelas e periferias há décadas e eu não vejo o Movimento Estudantil, sindicatos e militantes da esquerda partidária fazerem passeatas para denunciar o genocídio da juventude negra, com raríssimas exceções. Eis aí algo para você pensar e cobrar dos movimentos sociais de Campina Grande uma atitude?
 Em Salvador, por exemplo, tivemos que pautar as nossas questões políticas e raciais durante os protestos pelo passe livre e pela melhoria de todos os serviços públicos no Brasil. É que na história  do nosso país a classe média branca não vai lutar contra o racismo e priorizar o empoderamento de nossa população negra. Fizemos na cidade de Salvador a Frente Búzios, visto que não vamos caminhar na luta por um Brasil melhor, justo e igualitário, acreditando de forma ingênua que o Movimento Estudantil  vai abraçar o que nunca abraçou: as demandas e bandeiras históricas do Movimento Negro Brasileiro. Por outro lado, perceba  que no projeto dos  brancos inconfidentes do século XVIII não existia a preocupação em acabar com a escravidão. Já na Revolta dos Búzios de 1798 existia toda uma preocupação política com o fim do escravismo colonial, implantação de uma República e salarios iguais para brancos e negros, pois Lucas Dantas do Amorim Torres, João de Deus do Nascimento, Manoel Faustino dos Santos Lira e Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga compreenderam que para conquistar liberdade, cidadania e respeito aos direitos humanos, também era preciso acabar com as desigualdades raciais. Será que o Movimento Passe Livre e os estudantes de classe média não poderiam aprender a lutar por igualdade racial, carregando  pelas ruas do Brasil a bandeira política dos mártires da Revolta dos Búzios?
Com relação ao texto Realidade Cruel, concordo com a ideia de que não podemos naturalizar e banalizar a morte de negros como se isso fosse apenas por causa do tráfico ou crimes de gangues como a grande mídia racista quer botar na cabeça do povo brasileiro, já que seu texto traz essa problematização para o leitor pensar, embora sua narrativa não faça essa afirmação como tenho feito aqui. Ora, só na capital paraibana são assassinados 29 jovens negros, para cada joven branco proporcionalmente. Nesse sentido, a capital João Pessoa tem um índice altíssimo de mortes de jovens negros, mas o “Correio Verdade” nunca fez matéria sobre esse fato para que a sociedade possa refletir essa verdadeira pandemia.  Não  faz porque não interessa  para esse tipo de programa mostrar que essa realidade persiste, obviamente, por causa da falta de oportunidades de trabalho e  educação de qualidade na vida desses jovens negros.
 O  que interessa para esse tipo de programa é banalizar a violência na hora do almoço das famílias paraibanas. Para esse programa sensacionalista, o que importa é rotular, humilhar, explorar a miséria humana e linchar moralmente nossa juventude negra e pobre das periferias, geralmente chamando-a  de “mofi” e de outros adjetivos pejorativos no intuito de ganhar mais audiência e lucros com patrocinadores, o que levou no ano passado o Ministério Público Federal a pedir a cassação da concessão da TV Correio, a condenação dos réus no pagamente de indenização por uso indevido da imagem, danos à honra e à intimidade, além do pagamento de indenização por danos morais à coletividade. É uma pena que o MPF não tenha conseguido banir o “Correio Verdade” do mapa da Paraíba.
 Ainda gostaria de continuar fazendo uma análise do seu texto dentro dessa conjuntura política, marcada pela agitação popular das ruas em que os(as) estudantes são os principais atores sociais e protagonistas dessa luta contra a corrupção, falta de qualidade nos transportes públicos e por melhorias na saúde e educação. Percebemos no Movimento Passe Livre daqui e de outros estados que nas faixas e cartazes  dos estudantes de classe média e pobres das escolas públicas a falta de preocupação com o fim das desigualdades raciais. Também, notamos que faz parte da pauta política dos integrantes do Movimento Estudantil da UEPB e UFCG, assim como dessa mesma classe média branca que tá indo para as ruas de Campina Grande lutar por um Brasil melhor e livre da corrupção preocupações com a repressão policial, mobilidade urbana, combate ao projeto “cura gay” da bancada evangélica do Congresso Federal e rejeição completa a ideia absurda de retirar do Ministério Público o poder de investigação, o que considero justo e legítimo diante de tantos desmandos administrativos da classe política
 Entretanto, podemos afirmar sob o ponto de vista político do Movimento Negro Brasileiro que é notório que essa mesma juventude citada aqui  sempre ignorou essa matança indiscriminada de jovens negros no Brasil e em Campina Grande, cidade que ocupa a vigésima quarta posição em assassinatos de jovens afrodescendentes, segundo o mapa da violência que foi divulgado pelo Ministério da Justiça e SEPPIR. Pelo visto, parece-me que a tarefa de lutar contra o racismo é sempre do nosso povo negro e isso me  faz lembrar das lições políticas de Steve Bantu Biko-o criador do Movimento Consciência Negra na África do Sul:"estamos por nossa própria conta."
Esse  seu texto,  caro amigo, ainda poderia servir muito bem como uma verdadeira lição de moral e cidadania para os políticos e agentes públicos deste país, já que a morte prematura de centenas de jovens pobres e negros acontece, na verdade, por falta de emprego, moradia decente, educação de qualidade, áreas de lazer, etc. Em síntese, não é o tráfico de drogas como o “Correio Verdade” quer nos fazer acreditar  o fator preponderante para explicar as mortes de tantos jovens, na sua maioria negros e pardos, pelas periferias e centros urbanos  de Santa Rita, Campina Grande, Sousa, Cabedelo, Patos, Bayux e João Pessoa. Pelo contrário,  o Estado brasileiro sempre ausente nas suas políticas públicas nas periferias e presente apenas quando é para reprimir como aconteceu recentemente  no conjunto de favelas da Maré,  no Rio de Janeiro, onde vários de seus moradores foram mortos  pelo BOPE-Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar carioca. Talvez,  resida aí as causas reais para explicar parte dessa violência gratuita nas grandes  cidades.
Pode ser que seja essa forma equivocada e facista do Estado brasileiro de agir, sem respeitar aquela essência ético- espiritual que a nossa Constituição chama de dignidade da pessoa humana a real causa  para explicar certas  questões que você traz à tona no seu texto. Certamente, vejo que uma das saídas para o enfrentamento dessa realidade perversa está nas suas próprias palavras quando você diz de forma categórica:”podemos apresentar alternativas culturais como as atividades desenvolvidas pela Biblioteca Comunitária do Tambor, pois a criança que recebe incentivo à leitura com certeza enxergará outras possibilidades onde antes ela via apenas violência.”
À guisa de conclusão, vejo que iniciativas sociais como essas da Biblioteca Comunitária do Tambor  me enche de orgulho e de esperanças, tendo em vista que sua atitude de empreendedor cultural e de todos(as) que fazem  parte desse projeto  contribui para a construção de um mundo com justiça social e, por conseguinte, para garantir a cidadania plena a todas essas crianças excluídas socialmente, assim como  para essa juventude pobre e negra esquecida pelas políticas públicas da “cidade da inovação.” O Bairro do Tambor, mesmo assim, vai crescer com a força de seu povo impusionada pelo seu trabalho voluntário- professor Williams Lima Cabral. Vai crescer, por conta de um belo trabalho social como esse que mesmo sem apoio governamental, diga-se de passagem, pode cantar para o mundo em que pese todas as dificuldades impostas pelos vampiros da babilônia:"deixa eu cantar que é pro mundo ficar odara".  Como também pode cantar para combater os novos feitores e senhores de engenho de Campina Grande, dizendo em alto e bom som:"mais forte que o açoite dos feitores são tambores, os tambores". Palavras de Chico César.
Viva a Biblioteca Comunitária do Tambor!

Autor: Jair Nguni- Historiador e militante do Movimento Negro de Campina Grande.


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