Sobre o Pinheirinho: Não, não há mais juízes em Berlim
Por Francisco Mata Machado Tavares, professor universitário, bacharel em direito, mestre e doutorando em ciência política
O fato é tão simples como estarrecedor. 9.600 (nove mil e seiscentas) pessoas vivem, há 8 (oito) anos, em um bairro da cidade de São José dos Campos conhecido como Pinheirinho. Estas pessoas são, todas, cidadãs de uma República cuja constituição, em seu artigo 6o, assegura, dentre outros, o direito fundamental à moradia, entendido como cláusula pétrea, ou seja, como garantia insusceptível de redução, senão mediante um golpe de Estado.
O terreno habitado por esses seres humanos não cumpria, até que eles ali chegassem, a sua função social. A mesma Constituição da República, em seu artigo 5o, também definido como cláusula que não se altera, condiciona a validade normativa do direito de propriedade ao cumprimento da respectiva função social. É majoritária, entre os constitucionalistas, a tese de que a referida dimensão funcional do direito à propriedade não se configura como limite (a exemplo dos direitos de vizinhança, servidões obrigatórias, etc.), mas como componente deontológica da situação proprietária. Em suma: sem obediência à função social, não há direito de propriedade válido neste país.
A massa falida de uma empresa chamada Selecta, cuja propriedade fora de um nababo detido em duas ocasiões por crimes de ordem fiscal e financeira, ostenta documentos que, formalmente, indicariam sua propriedade sobre o terreno onde as milhares de pessoas acima referidas possuem as as respectivas moradias há quase um decênio. Ao solene arrepio do aspecto funcional do direito à propriedade privada, o Poder Judiciário do Estado de São Paulo optou por negar às famílias seu local de habitação, em favor da pessoa jurídica que, possivelmente, continuaria a manter, ali, um grande espaço vazio, transpondo a materialidade de uma vila com gente, comércio, igreja e histórias humanas em frio ativo que valorizaria o patrimônio de alguém, ao sabor das inexoráveis pressões inflacionárias do mercado imobiliário, definido pela inelasticidade da oferta. Em síntese: o Poder Judiciário malferiu dois artigos asseguradores de direitos fundamentais da Constituição (quinto e sexto), para expulsar pessoas humanas do seus lares, de modo a garantir que milionários aumentassem seus patrimônios. A prefeitura do município de São José dos Campos, assim como o Governo do Estado de São Paulo, endossaram tal prática.
Os moradores do bairro do Pinheirinho resistiram e, como resultado de sua abnegada luta, conquistaram, dentre outras vitórias, o interesse da União em considerar a desapropriação do terreno e, subsequentemente, implementar um projeto habitacional no local, política pública que contaria, dentre outras medidas, com a regularização fundiária da ocupação. Em suma, o Governo Federal, devidamente pressionado por ativistas e pela sociedade civil, acenou com a possibilidade de cumprir parte de suas obrigações prescritas no artigo 3o, inciso III, do Estatuto das Cidades, no que não fora acompanhado, lamentavelmente, pelos governos do Estado e do Município, os quais optaram por permanecer na ilegalidade.
De qualquer modo, tendo em vista o interesse jurídico da União na conflituosa questão, haja vista a necessidade de cumprimento do já citado artigo do Estatuto das Cidades, fez-se necessária a inclusão da Advocacia Geral da União - AGU no processo judicial e, por conseguinte, em respeito ao artigo 109 da Constituição, o deslocamento do feito para a Justiça Federal. Como consequência do desaforamento do processo em relação à Justiça Estadual de São Paulo, o Tribunal Regional Federal, órgão da Justiça Federal de 2a Instância, impôs a suspensão da ilegal determinação de despejo das 9,6 mil pessoas humanas que habitam o Pinheirinho, de modo a subtrair eficácia e validade de qualquer decisão sobre a matéria proferida no âmbito da justiça comum.
Ocorre, todavia, que não há juízes nesta Berlim proto-nazista sob a qual vivem os brasileiros do século XXI. Uma decisão judicial estadual de 1a Instância determinou que, em 22 de janeiro de 2012, as 9,6 mil pessoas fossem subtraídas do seu direito fundamental à moradia, em favor de uma massa falida que pretende manter o imóvel vazio, à espera de valorização ociosa incompatível com o princípio da função social da propriedade. É preciso que a situação fique bem clara: uma decisão judicial de 1a instância transgrediu um despacho da Justiça Federal de 2a instância e, ato contínuo, foi devidamente obedecida pelo Governo de São Paulo e sua Polícia Militar. Tudo para que quase 10 mil pessoas fossem, como ratos, jogadas nas ruas, sem destino, sem dignidade, sem direito a nada.
Mas a tragédia é ainda pior. O advogado das famílias despejadas foi ilegalmente detido. Um Senador da República (Eduardo Suplicy – PT/SP), um Deputado Federal (Ivan Valente – PSOL/SP) e um presidente de partido (Zé Maria de Almeida – PSTU/SP), foram ilegalmente sitiados em uma escola localizada nas proximidades do Bairro Pinheirinho e, dali, impedidos de sair, em clara situação de prisão ilegal. E, até aqui, início da tarde de 22 de janeiro, há relatos (ainda sujeitos à devida confirmação) de que houve vítimas fatais.
A se confirmar tão trágica notícia, tratam-se de histórias de vida interrompidas pela ação bárbara de umEstado que não atua mais próximo da legalidade do que qualquer bando ou quadrilha. O certo é que pessoas foram retiradas de seus lares por bandidos perigosos, armados, sustentados por impostos adimplidos por todos os cidadãos e que atuam ao arrepio da Lei, tal como concretamente prescrita pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região. Sem respaldo normativo, sem qualquer direito, sem nenhuma adequação à legalidade, como qualquer milícia ou grupo do crime organizado, o assim-chamado Poder Público irrompe contra uma válida decisão do Tribunal Regional Federal, aprisiona parlamentares, detém advogados (ao arrepio do artigo 7o da Lei 8.906) e imp õe a barbárie, a selvageria e o terror contra 9,6 mil pessoas humanas que queriam apenas viver sob um teto e contar com um lugar para voltar, após extenuantes jornadas de trabalho. É a violência pura e sem discurso de justificação qualquer... Um horror de tão monta nefasto, que só pode ser comparado aos mais virulentos atos do nazi-fascismo no Século XX.
Não se sabe o destino das famílias. Não se sabe quantas pessoas estão mortas e feridas neste momento. Sabe-se que a decisão de desocupação foi flagrantemente ilegal, bem como que a truculência militar e as detenções de líderes, parlamentares e advogados demonstram o caráter político-golpista do ocorrido. Certamente, as autoridades responsáveis por tamanha atrocidade não serão responsabilizadas. Possivelmente, além de desabrigados e humilhados em sua dignidades, muitos dos cidadãos hoje expulsos ilegalmente de suas moradias serão alvo de ações penais em razão da alegada prática de tipos criminais como desacato, dano ou qualquer outra conduta escolhida pelo seletivo aparato estatal. E é bem provável que aqueles que redigem textos como este revivam o drama de Émile Zola e tenham suas condutas capituladas em algum crime contra a honra.
Apenas uma lição deve ser extraída de tão dolorosa tragédia: o Estado Democrático de Direito é uma mentira. A legalidade é tão somente um artefato ideológico utilizado seletivamente para justificar o uso do arbítrio e da violência contra a classe social que produz, em favor da classe que parasita a humanidade. Não há qualquer cânone hermenêutico que explique a prática jurisdicional dos nossos tribunais, senão o meta-cânone da dominação de classe. É triste e muito, mas muito sofrido, aprender que um jovem alemão do século XIX, formado em direito e que com este sistema se decepcionara ainda na juventude, estava integralmente correto quando asseverou, em um misto de incitação com vaticínio, que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Ceif aram as rosas do Pinheirinho, mas não impedirão a primavera da vitória do povo oprimido!
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