terça-feira, 24 de setembro de 2013

Só vai sobrar o Vermelho!

"Só vai sobrar o vermelho!" novo documentário de Riccardo Migliore (em fase de produção)

"Só vai sobrar o vermelho" está sendo produzido entre as cidades de Campina Grande e João Pessoa (PB). 
 
O documentário, possivelmente um média ou longa-metragem, é inerente à situação da juventude afrodescendente na PB (CG e JP). O título tem duplo sentido, sendo que o fato de "só sobrar o vermelho" aponta para o desaparecimento do preto, outra cor da bandeira do Estado da Paraíba. Neste sentido, trata-se de um título forte, inclusive o vermelho também está ligado ao sangue que está sendo derramado por muitos jovens, em  grande maioria negros.
Daniel Santos, Artesão/Estudante do Projovem do Bairro do Jeremias (CG/PB)
 
A justificativa da urgência desta produção encontra-se nos dados oficiais contidos no "Mapa da Violência" (http://mapadaviolencia.org.br/) no que se refere ao estado nordestino, um dos recordistas negativos em escala nacional (quanto ao aumento do índice de mortes de jovens negros de 2006 até 2010: apenas para exemplificar, Campina Grande passou de 84 mortes de jovens negros para 196,9; enquanto no mesmo período as mortes de cidadãos brancos se reduziram de 74 para 11,4; Já Santa Rita passou de 28 para 229 jovens negros assassinados; enquanto as mortes de  jovens brancos passaram de 34 para 9,9). 
À esq. sentado de costas, o Tatalorixá Pai Vicente Mariano 
e à dir. Riccardo Migliore (Diretor do filme)
filmando no terreiro, dia 21/9/2013. 

É útil salientar que nós nos alegramos com a redução de mortes de jovens brancos (o valor da vida não se mede pela cor da pele), contudo, o aumento consistente de mortes de jovens negros é alarmante e merece visibilidade e ações urgentes por parte de toda a sociedade, que em seu conjunto, sente-se refém, inclusive em suas próprias casas. 
William, historiador, é idealizador e coordenador de um projeto 
de Biblioteca Comunitária no Bairro do Tambor (CG), além 
de ensinar Capoeira às crianças do mesmo bairro.  

 
A produção do filme é nossa, em parceria com Ariosvalber Oliveira e Moises Alves(MNCG)Através deste documentário pretendemos chamar a atenção sobre esta situação ao mesmo tempo lamentável e assustadora. 
Moises Alves e Ariosvalber Oliveira carregando uma faixa contra preconceito e racismo antes do jogo de futebol do Treze FC contra o Fortaleza, 
no Estádio Presidente Vargas (22/9/'13).
Fotograma extraído da filmagem

Nossa postura não é complacente quanto aos que se envolvem no crime, inclusive buscamos mostrar e enfatizar exemplos de jovens bem sucedidos que venceram na vida e escaparam do triste destino que marca a maioria daqueles que se envolvem com as drogas e a delinquência. Contudo, é preciso entender que trata-se de uma situação complexa, que não pode ser reduzida a lugares comuns e leituras simplistas segundo as quais "os jovens negros se envolvem porque querem". 
Pai Vicente Mariano, Tatalorixá do Terreiro da Estação Velha, CG/PB. 
Desenvolve um trabalho social junto à comunidade carente do bairro (fotograma extraído das filmagens no terreiro)

Junto a moradores e moradoras de bairros periféricos violentos e outros  locais de risco, e com a ajuda de artistas e intelectuais afrodescendentes paraibanos, tentamos compreender melhor este "estado das coisas", cujos números em si espantam por se aproximarem àqueles de uma guerra civil e evidenciar o aumento da desigualdade racial, mas não explicam completamente (se bem que os números em si são bastante emblemáticos) as razões deste genocídio da juventude negra, por sinal, pouco divulgado pelos principais meios de comunicação e informação.
Professora Solange, assistente social e docente no 
Projovem do bairro Jeremias (CG/PB)

Apesar da produção encontrar-se ainda em sua fase inicial, podemos destacar desde já de qual filme NÃO se trata: não estamos produzindo um documentário sensacionalista (cadáveres, pessoas morrendo, parentes chorando, com toda probabilidade não entrarão a fazer parte deste filme, isso por uma questão de respeito).
Riccardo Migliore (diretor do filme) junto com o cantor paraibano Jonas Escurinho, que aceitou participar destedocumentário, trazendo sua 
rica trajetória de vida e sua atividade de arte-educador, inclusive 
em presídios para jovens infratores de João Pessoa (PB).

Concluindo, ao se tratar de um tema delicado e polêmico, não esperamos receber incentivos institucionais (que por sinal até agora nunca recebemos), portanto qualquer tipo de parceria ou apoio cultural, técnico e financeiro será muito bem vindo. Por enquanto contamos com o apoio de alguns artistas da terra, como Jonas Escurinho (JP), e o próprio Moises Alves (CG) além do Projovem do Jeremias (CG), o Terreiro do Tatalorixá Pai Vicente Mariano (Estação Velha/CG), o Projeto de Biblioteca comunitária do Tambor (CG), além do MNCG, do qual Moises e Ariosvalber fazem parte.  
  
Seguem algumas imagens de bastidores, sendo que outras informações serão postadas em breve.
 

De esquerda a direita: Moises Alves (Co-Produtor/Pesquisador), Daniel Santos (Depoente/Estudante do Projovem do Jeremias), Riccardo Migliore (Diretor/Produtor do filme), Ariosvalber (Co-Produtor/Pesquisador).
 

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Entre o Movimento Passe Livre e “Correio Verdade”: prefiro viver das lições políticas de Steve Bantu Biko e dos mártires da Revolta dos Búzios



  Conheci este percussionista, capoeirista da Escola de Capoeira Afro Nagô e integrante do Grupo Maracagrande na Universidade Estadual da Paraíba quando estava para terminar meu Curso de Licenciatura Plena em História, na UEPB. Conheci o professor de História Williams  Cabral usando cabelo black power, tranças africanas e dreadlocks. Percebemos no rapaz um orgulho de ostentar pelas ruas de Campina Grande a estética africana e isso sempre me chamou atenção, pois aqui na nossa cidade poucos são os negros e negras que assumem sua negritude com orgulho. A África que fez e ainda deve fazer literalmente a cabeça desse malungu que gosta de viver na “felicidade guerreira” das alfaias do maracatu, também deu sua contribuição à luta contra o racismo no campo acadêmico, tendo em vista que Williams fez um artigo sobre a Comunidade Quilombola do Grilo, uma comunidade que fica localizada no município do Riaçhão do Bacamarte. Quem quiser acessar esse trabalho acadêmico é só pesquisar no blog quilombos da Paraíba.
Este educador ainda é um dos idealizadores do projeto social e cultural Biblioteca Comunitária do Tambor. Olhando para as fotos do projeto podemos notar o compromisso que ele tem com a formação pedagógica de crianças pobres e adolescentes do Bairro do Tambor. Foi este historiador o reponsável pela divulgação da minha produção textual no estado da Paraíba, pois, enquanto meus textos eram divulgados em Salvador, São Paulo e em outros estados do Brasil. Na Paraíba, apenas o blog  livros do tambor tem aberto seus espaços de comunicação para que eu possa publicar minhas ideias contra o racismo e socializar, assim, com o grande público meus textos que também mostram a importância de um Abdias Nascimento e de João Cândido para a história do povo brasileiro, assim como denunciam o   genocídio da juventude negra na Paraíba.   
Acredito que foi dessa forma que tudo começou quando Williams deve ter percebido o valor social e intelectual dos meus textos e que essa mesma produção textual não era valorizada por aqui. Acho que foi por essa razão que o joven professor me pediu para fazer uma pequena análise de um texto de sua autoria, o qual pode ser lido no blog livros do tambor, intitulado de Realidade Cruel. Esse texto que merece ser divulgado, em primeiro lugar, parece e muito com as ideias que eu defendo há mais de 22 anos no Movimento Negro de Campina Grande, visto que em seu conteúdo há toda uma crítica forte e direcionada aos produtores do “Correio Verdade,”programa veiculado pelo sistema correio de comunicação que se especializou em estigmatizar diariamente o negro pobre da periferia como um ser potencialmente criminoso.
Basta olharmos para o tratamento humilhante que esse programa  faz ao entrevistar nossa juventude negra, parda e pobre para percebermos as violações dos direitos humanos e que isso faz parte do ideário dos que defendem a redução da maioridade penal, além de contribuir para a construção de todo um imaginário preconceituoso em que o joven negro e pobre tem sempre a sua imagem exposta  de forma  totalmente degradante, negativa e estereotipada. Nesse contexto, o jovem afrodescendente é sempre a principal vítima do estereótipo racista construído pelas elites dominantes, as quais  sempre quiseram  rotular nossos jovens negros, marginalizados e pobres da periferia como sujeitos sociais  “ violentos e bandidos” para justificar os crimes, mortes, prisões e torturas contra essa mesma juventude que vive abandonada nas periferias e centros urbanos, por esse sistema capitalista injusto, racista e opressor.
 Assim sendo, diante desse quadro sócio-racial, somos tratados por essa sociedade excludente como seres humanos descartáveis desde o 13 de maio de 1888 quando fomos jogados nas favelas, becos, palafitas e morros sem direito a quase nada em termos de cidadania. Abdias Nascimento do alto de sua sábia intelectualidade  chamava isso de genocídio o que as elites racistas fizeram e fazem com o povo negro no pós- abolição. Já  o poeta campinense Arnaldo França Xavier fez um caligrama, no ano de 1988, em forma de cruz para representar o golpe final que o projeto conservador abolicionista deu no nosso povo negro. Pesquisem a vida do poeta, teatrólogo, compositor e escritor Arnaldo França Xavier e vocês leitores vão entender o que eu quero lhes dizer, visto que toda essa história tem tudo a  ver Williams com os argumentos do seu texto quando você diz que  a propaganda do "boy doido" foi deixada de lado, pelo fato de estimular a criação de "jovens sem perspectiva social em  meros delinquentes da periferia", o que concordo plenamente.
Diante dessa realidade, é pura obviedade sociológica dizer que nossos jovens negros são as vítimas preferenciais da violência urbana como você mostrou no gráfico. Entretanto, você deixou de enfatizar que o racismo cruel, desumano e estrutural é o principal vetor de produção e reprodução dessa violência contra a população negra. Poderia, assim, ter sido mais contundente na denúncia dessa matança de jovens negros como eu faço nas minhas entrevistas e palestras em Campina Grande. É o racismo sistêmico responsável pela distribuição injusta dos recursos que nos condena a viver numa eterna cidadania de segunda classe, sem que a sociedade paraibana e o programa “Correio Verdade” se incomodem com a morte de  tantos jovens negros nas periferias da Paraíba. Veja, caro amigo e meus leitores, que as balas de borracha dos policiais contra o Movimento Passe Livre  chama atenção de todos. O negro pobre sofre é com bala de verdade nas favelas e periferias há décadas e eu não vejo o Movimento Estudantil, sindicatos e militantes da esquerda partidária fazerem passeatas para denunciar o genocídio da juventude negra, com raríssimas exceções. Eis aí algo para você pensar e cobrar dos movimentos sociais de Campina Grande uma atitude?
 Em Salvador, por exemplo, tivemos que pautar as nossas questões políticas e raciais durante os protestos pelo passe livre e pela melhoria de todos os serviços públicos no Brasil. É que na história  do nosso país a classe média branca não vai lutar contra o racismo e priorizar o empoderamento de nossa população negra. Fizemos na cidade de Salvador a Frente Búzios, visto que não vamos caminhar na luta por um Brasil melhor, justo e igualitário, acreditando de forma ingênua que o Movimento Estudantil  vai abraçar o que nunca abraçou: as demandas e bandeiras históricas do Movimento Negro Brasileiro. Por outro lado, perceba  que no projeto dos  brancos inconfidentes do século XVIII não existia a preocupação em acabar com a escravidão. Já na Revolta dos Búzios de 1798 existia toda uma preocupação política com o fim do escravismo colonial, implantação de uma República e salarios iguais para brancos e negros, pois Lucas Dantas do Amorim Torres, João de Deus do Nascimento, Manoel Faustino dos Santos Lira e Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga compreenderam que para conquistar liberdade, cidadania e respeito aos direitos humanos, também era preciso acabar com as desigualdades raciais. Será que o Movimento Passe Livre e os estudantes de classe média não poderiam aprender a lutar por igualdade racial, carregando  pelas ruas do Brasil a bandeira política dos mártires da Revolta dos Búzios?
Com relação ao texto Realidade Cruel, concordo com a ideia de que não podemos naturalizar e banalizar a morte de negros como se isso fosse apenas por causa do tráfico ou crimes de gangues como a grande mídia racista quer botar na cabeça do povo brasileiro, já que seu texto traz essa problematização para o leitor pensar, embora sua narrativa não faça essa afirmação como tenho feito aqui. Ora, só na capital paraibana são assassinados 29 jovens negros, para cada joven branco proporcionalmente. Nesse sentido, a capital João Pessoa tem um índice altíssimo de mortes de jovens negros, mas o “Correio Verdade” nunca fez matéria sobre esse fato para que a sociedade possa refletir essa verdadeira pandemia.  Não  faz porque não interessa  para esse tipo de programa mostrar que essa realidade persiste, obviamente, por causa da falta de oportunidades de trabalho e  educação de qualidade na vida desses jovens negros.
 O  que interessa para esse tipo de programa é banalizar a violência na hora do almoço das famílias paraibanas. Para esse programa sensacionalista, o que importa é rotular, humilhar, explorar a miséria humana e linchar moralmente nossa juventude negra e pobre das periferias, geralmente chamando-a  de “mofi” e de outros adjetivos pejorativos no intuito de ganhar mais audiência e lucros com patrocinadores, o que levou no ano passado o Ministério Público Federal a pedir a cassação da concessão da TV Correio, a condenação dos réus no pagamente de indenização por uso indevido da imagem, danos à honra e à intimidade, além do pagamento de indenização por danos morais à coletividade. É uma pena que o MPF não tenha conseguido banir o “Correio Verdade” do mapa da Paraíba.
 Ainda gostaria de continuar fazendo uma análise do seu texto dentro dessa conjuntura política, marcada pela agitação popular das ruas em que os(as) estudantes são os principais atores sociais e protagonistas dessa luta contra a corrupção, falta de qualidade nos transportes públicos e por melhorias na saúde e educação. Percebemos no Movimento Passe Livre daqui e de outros estados que nas faixas e cartazes  dos estudantes de classe média e pobres das escolas públicas a falta de preocupação com o fim das desigualdades raciais. Também, notamos que faz parte da pauta política dos integrantes do Movimento Estudantil da UEPB e UFCG, assim como dessa mesma classe média branca que tá indo para as ruas de Campina Grande lutar por um Brasil melhor e livre da corrupção preocupações com a repressão policial, mobilidade urbana, combate ao projeto “cura gay” da bancada evangélica do Congresso Federal e rejeição completa a ideia absurda de retirar do Ministério Público o poder de investigação, o que considero justo e legítimo diante de tantos desmandos administrativos da classe política
 Entretanto, podemos afirmar sob o ponto de vista político do Movimento Negro Brasileiro que é notório que essa mesma juventude citada aqui  sempre ignorou essa matança indiscriminada de jovens negros no Brasil e em Campina Grande, cidade que ocupa a vigésima quarta posição em assassinatos de jovens afrodescendentes, segundo o mapa da violência que foi divulgado pelo Ministério da Justiça e SEPPIR. Pelo visto, parece-me que a tarefa de lutar contra o racismo é sempre do nosso povo negro e isso me  faz lembrar das lições políticas de Steve Bantu Biko-o criador do Movimento Consciência Negra na África do Sul:"estamos por nossa própria conta."
Esse  seu texto,  caro amigo, ainda poderia servir muito bem como uma verdadeira lição de moral e cidadania para os políticos e agentes públicos deste país, já que a morte prematura de centenas de jovens pobres e negros acontece, na verdade, por falta de emprego, moradia decente, educação de qualidade, áreas de lazer, etc. Em síntese, não é o tráfico de drogas como o “Correio Verdade” quer nos fazer acreditar  o fator preponderante para explicar as mortes de tantos jovens, na sua maioria negros e pardos, pelas periferias e centros urbanos  de Santa Rita, Campina Grande, Sousa, Cabedelo, Patos, Bayux e João Pessoa. Pelo contrário,  o Estado brasileiro sempre ausente nas suas políticas públicas nas periferias e presente apenas quando é para reprimir como aconteceu recentemente  no conjunto de favelas da Maré,  no Rio de Janeiro, onde vários de seus moradores foram mortos  pelo BOPE-Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar carioca. Talvez,  resida aí as causas reais para explicar parte dessa violência gratuita nas grandes  cidades.
Pode ser que seja essa forma equivocada e facista do Estado brasileiro de agir, sem respeitar aquela essência ético- espiritual que a nossa Constituição chama de dignidade da pessoa humana a real causa  para explicar certas  questões que você traz à tona no seu texto. Certamente, vejo que uma das saídas para o enfrentamento dessa realidade perversa está nas suas próprias palavras quando você diz de forma categórica:”podemos apresentar alternativas culturais como as atividades desenvolvidas pela Biblioteca Comunitária do Tambor, pois a criança que recebe incentivo à leitura com certeza enxergará outras possibilidades onde antes ela via apenas violência.”
À guisa de conclusão, vejo que iniciativas sociais como essas da Biblioteca Comunitária do Tambor  me enche de orgulho e de esperanças, tendo em vista que sua atitude de empreendedor cultural e de todos(as) que fazem  parte desse projeto  contribui para a construção de um mundo com justiça social e, por conseguinte, para garantir a cidadania plena a todas essas crianças excluídas socialmente, assim como  para essa juventude pobre e negra esquecida pelas políticas públicas da “cidade da inovação.” O Bairro do Tambor, mesmo assim, vai crescer com a força de seu povo impusionada pelo seu trabalho voluntário- professor Williams Lima Cabral. Vai crescer, por conta de um belo trabalho social como esse que mesmo sem apoio governamental, diga-se de passagem, pode cantar para o mundo em que pese todas as dificuldades impostas pelos vampiros da babilônia:"deixa eu cantar que é pro mundo ficar odara".  Como também pode cantar para combater os novos feitores e senhores de engenho de Campina Grande, dizendo em alto e bom som:"mais forte que o açoite dos feitores são tambores, os tambores". Palavras de Chico César.
Viva a Biblioteca Comunitária do Tambor!

Autor: Jair Nguni- Historiador e militante do Movimento Negro de Campina Grande.


quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Um Espaço de Memórias




Pitacos sobre um Museu Vivo do Nordeste





Redescobrir o cotidiano de um Nordeste multicultural, onde as definições das fronteiras políticas artificiais são superadas pelas regionalidades construídas nas semelhanças e dessemelhanças de tantas etnias reunidas.
Perceber em cada artefato, a importância de sua inclusão na vida de nossos vários sertões brejos e cariris, desvendando na história de cada um o quanto somos tupis, africanos e ibéricos.
Entender por que tecnologias universais foram incorporadas e elementos culturais reinventados, o que possibilitou a formação de um mosaico de saberes tão diversificados, porém harmônico.
Neste sentido construímos um museu vivo, no quintal de uma casa, originado de encontros poéticos e musicais em torno de um fogão à lenha, pilões, panelas de barro e todo tipo de mangaio, expondo nosso passado tanto no que ele teve de trágico quanto de grandioso, ressaltando as peculiaridades de suas falas, seus ofícios e suas artes sem folclorizá-lo.
Portanto, a universalidade da globalização não exclui as permanências locais e regionais. Ao contrário preservar os elementos que compõem as bases de nossas culturas, mantendo os pés firmes como raízes, porém com as cabeças voltadas para o que rola na roda da vida e no giro da história, incorporando sem substituir e inovando sem sucatear o que nos foi legado.
Adonhiran Ribeiro dos Santos
Professor contador de história(s) – UEPB

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

CARTA ABERTA AOS VEREADORES E VEREADORAS DE CAMPINA GRANDE-PB, EM APOIO AO PROJETO DE LEI DE AUTORIA DO VEREADOR NAPOLEÃO MARACAJÁ PARA O DIA 20 DE NOVEMBRO



Prezad@s Vereador@s do Município de Campina Grande – PB,


A Comissão de Promoção da Igualdade Racial e da Diversidade Religiosa da OAB/PB vem através desta à presença de Vossas Senhorias solicitar o empenho da Câmara Municipal de Campina Grande – Paraíba, na aprovação do Projeto de Lei de autoria do Vereador Maracajá, que visa criar o Dia Municipal da Consciência Negra, 20 de novembro, como feriado municipal, em respeito e em busca do resgate da memória de noss@s antepassad@s negras e negros, e em respeito aquel@s que ainda virão, depositári@s da força, da fé, da dignidade de um povo.O Dia 20 de Novembro, Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra criado pela Lei 12.519/2011 já é adotado por aproximadamente 700 municípios segundo informações dadas pela Fundação Palmares. A escolha da data está ligada a morte do herói Zumbi dos Palmares que teria morrido em 20 de novembro de 1695, que tem seu nome no Panteão dos Herois da Pátria.
A luta e a história dos antepassad@s da população negra na Paraíba precisa ser reverenciada, resgatada, festejada! Conforme verificamos pelo número elevado de comunidades quilombolas. Na Paraíba existem aproximadamente 41 quilombos, sendo que a maioria tem sofrido com invasões de grilheiros em suas terras, quando as mesmas gozam de proteção pelo art. 215 e parágrafos seguintes da CF/88 e não tem recebido nem do Governo do Estado da Paraíba, nem da União, o devido respeito aos direitos dessas comunidades tradicionais. Na região do município do Conde, o que se vê é uma invasão promovida por políticos locais e de empreendimentos hoteleiros em áreas quilombolas Basta lembrarmos as lutas e assassinatos compreendidos entre os anos de 1970 e 1980 nos quilombos do Gurugi e Ipiranga ou mais recentemente no dia 20 de novembro de 2011, em que quilombolas no Conde -PB foram vítimas do arbítrio policial, sem sabermos ao certo se o fato está ligado a investidas de grupo de extermínio para entendermos que essas populações ainda estão sendo espoliadas de seus direitos.
Nem no Dia da Consciência Negra, a população afrodescendente se vê livre desses abusos. Em João Pessoa temos o quilombo urbano de Paratibe e ainda no município de Santa Rita podemos citar a existência no passado do Quilombo do Cumbe. Saindo de João Pessoa para Campina Grande, passamos pelo Quilombo do Matão entre os municípios de Mogeiro e Gurinhém. Ainda, próximo ao município de Campina Grande, em Areia, temos os Quilombos de Mundo Novo e Senhor do Bonfim, o em Riachão do Bacamarte também existe o Quilombo do Grilo, apenas para citar os mais próximos. Logo, existem comunidades símbolos e lembranças vivas da resistência da população negra em nosso estado, em todos os lugares e bem próximo à população campinense.
Sobre Campina Grande, segundo dados do IBGE, 51% da população se autoidentificou como negra (pret@s e pard@s), conforme o art. 1º do Estatuto da Igualdade Racial.  Os dados apresentados pelo Mapa da Violência de 2012 – A Cor dos Homicídios do Brasil não trazem tranquilidade, quando verificamos que o município ocupa a 24ª colocação em homicídios e vitimização da população negra no país, ficando atrás somente de Cabedelo, João Pessoa, Patos, sendo seguido por Santa Rita. A Paraíba aparece já como tendo a capital que mais mata jovens negr@s no país. A Paraíba aparece na terceira colocação em vitimização da população negra e em primeiro lugar em número de homicídios contra paraiban@s negr@s. A PARAÍBA É RACISTA! RACISMO NÃO É APENAS COMETER INJÚRIA QUALIFICADA POR DISCRIMINAÇÃO RACIAL OU AINDA RELIGIOSA, MAS SOBRETUDO NEGAR OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA POPULAÇÃO AFRODESCENDENTE. RACISMO É O RACISMO INSTITUCIONAL QUE TAMBÉM SE ENCONTRA PRESENTE NA OMISSÃO DO PODER PÚBLICO QUE NADA FAZ NA PARAÍBA PARA BAIXAR ESSES ÍNDICES EM QUE PESE A PROPAGANDA GOVERNAMENTAL.
         A vulnerabilidade e exclusão social que sofre a população negra campinense pode ser verificada segundo informações do militante negro e historiador campinense Jair N’Guni  que alerta para o genocídio da população jovem negra em Campina Grande-PB, ressaltando que “Campina Grande como o Brasil tem uma grande dívida histórica e social com a nossa população negra. Na nossa cidade 80% dos garis são negros e pardos e a maioria dos trabalhadores da construção civil também são de origem africana. O racismo tem exatamente essa característica desumana e injusta, ou seja, ele sempre tem empurrado o povo negro para os trabalhos mais pesados e de menor remuneração. Nesse sentido não podemos mais aceitar que a Câmara de Vereadores de Campina Grande permaneça indiferente diante desse quadro social e racial, marcado pelo genocídio silencioso e grande desemprego enfrentados pelos nossos jovens afrodescendentes moradores do Pedregal, Bairro das Cidades, Bairro da Glória, Catingueira, Bairro do Mutirão, Geremias, morro do Urubu, Ramadinha e de outros bairros e territórios, chamados pelos intelectuais e agentes públicos de áreas de vulnerabilidade social”
Ainda aos vereador@s campinenses pedimos encarecidamente que observem e cobrem do Prefeito e do Secretário de Educação do Município a implantação com eficiência da Lei n.º 10.639/2003 e da Lei n.º 11.645/2008 que também não tem sido respeitada em todo o estado e pelos municípios principalmente porque tem esbarrado em questões estranhas ao ensino da história, permeada por preconceitos de ordem religiosa, para que não haja resgate da memória através do respeito à herança viva mantida pelas comunidades tradicionais de terreiro, fazendo confusão entre comunidades tradicionais de terreiro, associando somente ao aspecto religioso, enquanto comunidades tradicionais em si.
Outra preocupação que soma às demais está relacionada à saúde da população afrodescendente diz respeito à falta de politicas de saúde tanto no âmbito estadual como municipal que possa cuidar das pessoas portadoras de anemias hereditárias como a falciforme que acarreta várias doenças e está mais presente entre negr@s e pard@s. A saúde da mulher negra também merece atenção específica.
Sugerimos ainda que seja elaborada pel@s parlamentares campinenses uma lei municipal que verse sobre o racismo institucional nas repartições públicas de Campina Grande-PB. Ainda que, em que pese a inviolabilidade das opiniões de seus membros, que o parlamento municipal tome cuidado ao elaborar leis municipais que não venham ferir o direito fundamental à diversidade religiosa, a liturgia das comunidades tradicionais de terreiros que também encontra amparo no seu direito social à alimentação, ao direito à soberania alimentar, acusando injustamente essas comunidades de biocidas, quando o alimento de origem animal é compartilhado entre tod@s as pessoas presentes às festas e obrigações realizadas. O desconhecimento ainda é a pior chaga que se mantém aberta para violar direitos pautados pelo preconceito, ainda que se dê um verniz ideológico em detrimento da memória de um povo.
         Apesar do Projeto de Lei do Vereador Napoleão Maracajá instituir feriado municipal em comemoração ao Dia da Consciência Negra, não podemos olvidar que o município de Campina Grande possui a Lei Municipal n.º 3.565/1997 que institui a Semana da Consciência Negra nas escolas públicas municipais, justamente em comemoração ao Dia da Consciência Negra, e que segundo representantes do movimento negro campinense não tem sido respeitada por nenhum gestor municipal desde a sua criação. Cabe ao Parlamento cobrar do Executivo o cumprimento das leis municipais, principalmente as que visam à promoção da igualdade racial entre campinenses.
         Por fim, a Comissão sugere aos vereadores da Câmara Municipal de Campina Grande-PB a realização de audiência pública para debater questões como o racismo institucional, a violência contra a juventude negra em Campina Grande-PB, o esquecimento da população negra residente nas áreas de maior vulnerabilidade social na cidade, o descumprimento da Lei n.º 10.639/2003 e Lei n.º 11. 645/2008, doenças com maior incidência sobre a população afrodescendente e as políticas públicas na área de saúde, o Estatuto da Igualdade Racial e a Lei n.º 7.716/1989 (Lei Caó), o respeito à diversidade religiosa, dentre outros temas que se façam pertinentes e caros à promoção da igualdade racial. Encerramos, pedindo mais uma vez a necessidade da aprovação do Projeto de Lei de autoria do Vereador Napoleão Maracajá para o resgate da memória e concretizar ações afirmativas em favor da população negra que é a população que sofre mais com a exclusão social.
Cordialmente,

Laura Taddei Alves Pereira Pinto Berquó
Presidente da Comissão de Promoção da Igualdade Racial e Diversidade Religiosa da OAB/PB

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Evo explica a verdadeira dívida externa


Exposição do Presidente Evo Morales ante a reunião de Chefes de Estado da Comunidade Europeia


Quem deve a quem? Genial discurso de Evo Morales escondido pela mídia

Quem deve a quem? Genial discurso de Evo Morales escondido pela mídia






Com linguagem simples, que era transmitida em tradução simultânea a mais de uma centena de Chefes de Estado e dignitários da Comunidade Européia, o Presidente Evo Morales conseguiu inquietar sua audiência quando disse:
Aqui eu, Evo Morales, vim encontrar aqueles que participam da reunião.
Aqui eu, descendente dos que povoaram a América há quarenta mil anos, vim encontrar os que a encontraram há somente quinhentos anos.
Aqui pois, nos encontramos todos. Sabemos o que somos, e é o bastante. Nunca pretendemos outra coisa.
O irmão aduaneiro europeu me pede papel escrito com visto para poder descobrir aos que me descobriram. O irmão usurário europeu me pede o pagamento de uma dívida contraída por Judas, a quem nunca autorizei a vender-me.
O irmão rábula europeu me explica que toda dívida se paga com bens ainda que seja vendendo seres humanos e países inteiros sem pedir-lhes consentimento. Eu os vou descobrindo. Também posso reclamarpagamentos e também posso reclamar juros. Consta no Archivo de Indias, papel sobre papel, recibo sobre recibo e assinatura sobre assinatura, que somente entre os anos 1503 e 1660 chegaram a San Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América.
Saque? Não acredito! Porque seria pensar que os irmãos cristãos pecaram em seu Sétimo Mandamento.
Expoliação? Guarde-me Tanatzin de que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue de seu irmão!
Genocídio? Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomé de las Casas, que qualificam o encontro como de destruição das Indias, ou a radicais como Arturo Uslar Pietri, que afirma que o avanço do capitalismo e da atual civilização europeia se deve à inundação de metais preciosos!
Não! Esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata devem ser considerados como o primeiro de muitos outros empréstimos amigáveis da América, destinado ao desenvolvimento da Europa. O contrário seria presumir a existência de crimes de guerra, o que daria direito não só de exigir a devolução imediata, mas também a indenização pelas destruições e prejuízos. Não
Eu, Evo Morales, prefiro pensar na menos ofensiva destas hipóteses.
Tão fabulosa exportação de capitais não foram mais que o início de um plano ‘MARSHALLTESUMA’, para garantir a reconstrução da bárbara Europa, arruinada por suas deploráveis guerras contra os cultos muçulmanos, criadores da álgebra, da poligamia, do banho cotidiano e outras conquistas da civilização.
Por isso, ao celebrar o Quinto Centenário do Empréstimo, poderemos perguntar-nos: Os irmãos europeus fizeram uso racional, responsável ou pelo menos produtivo dos fundos tão generosamente adiantados pelo Fundo Indoamericano Internacional?Lastimamos dizer que não. Estrategicamente, o dilapidaram nas batalhas de Lepanto, em armadas invencíveis, em terceiros reichs e outras formas de extermínio mútuo, sem outro destino que terminar ocupados pelas tropas gringas da OTAN, como no Panamá, mas sem canal. Financeiramente, têm sido incapazes, depois de uma moratória de 500 anos, tanto de cancelar o capital e seus fundos, quanto de tornarem-se independentes das rendas líquidas, das matérias primas e da energia barata que lhes exporta e provê todo o Terceiro Mundo. Este deplorável quadro corrobora a afirmação de Milton Friedman segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar e nos obriga a reclamar-lhes, para seu próprio bem, o pagamento do capital e os juros que, tão generosamente temos demorado todos estes séculos em cobrar. Ao dizer isto, esclarecemos que não nos rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus as vis e sanguinárias taxas de 20 e até 30 por cento de juros, que os irmãos europeus cobram dos povos do Terceiro Mundo. Nos limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos adiantados, mais o módico juros fixo de 10 por cento, acumulado somente durante os últimos 300 anos, com 200 anos de graça.
Sobre esta base, e aplicando a fórmula europeia de juros compostos, informamos aos descobridores que nos devem, como primeiro pagamento de sua dívida, uma massa de 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, ambos valores elevados à potência de 300. Isto é, um número para cuja expressão total, seriam necessários mais de 300 algarismos, e que supera amplamente o peso total do planeta Terra.
Muito pesados são esses blocos de ouro e prata. Quanto pesariam, calculados em sangue?
Alegar que a Europa, em meio milênio, não pode gerar riquezas suficientes para cancelar esse módico juro, seria tanto como admitir seu absoluto fracasso financeiro e/ou a demencial irracionalidade das bases do capitalismo.
Tais questões metafísicas, desde logo, não inquietam os indoamericanos. Mas exigimos sim a assinatura de uma Carta de Intenção que discipline os povos devedores do Velho Continente, e que os obrigue a cumprir seus compromissos mediante uma privatização ou reconversão da Europa, que permita que a nos entregue inteira, como primeiro pagamento da dívida histórica

Sobre os médicos Cubanos e os velhos preconceitos da elite brasileira

A chegada dos primeiros profissionais cubanos que vão atuar no programa Mais Médicos tem sido o principal destaque da grande mídia brasileira e das redes sociais. Nos últimos dias, presidentes de entidades médicas, jornalistas, cientistas sociais e blogueiros, das mais diversas tendências ideológicas, têm produzido inúmeros artigos e reportagens sobre o polêmico tema.
Como é do conhecimento de todos, os médicos estrangeiros trabalharão em municípios que foram preteridos por seus colegas brasileiros. De acordo com um decreto publicado pelo governo federal na segunda-feira (26/8), a carteira provisória dos médicos com diploma estrangeiro que atuarão pelo Mais Médicos deverá trazer uma mensagem expressa quanto à vedação ao exercício da medicina fora das atividades do programa. Sendo assim, em hipótese alguma se trata de um projeto que esteja tirando o emprego de profissionais brasileiros.
No entanto, a mídia hegemônica, ao invés de explicar à população o verdadeiro escopo do Mais Médicos, ressaltando seus aspectos positivos e negativos, limitou-se a atacar o programa e o governo federal. Desse modo, logo após o desembarque dos primeiros médicos estrangeiros, teve início uma enxurrada de falácias midiáticas e, não obstante, as redes sociais foram tomadas por declarações enfurecidas da elite tupiniquim.
Direito de todos
De acordo com os “especialistas” ouvidos pela imprensa nacional, o programa Mais Médicos, independentemente da falta desses profissionais nos rincões do país e nas periferias das grandes cidades, possui um viés estritamente eleitoreiro. Por outro lado, o fato de o Estado brasileiro não pagar os salários diretamente aos profissionais cubanos, mas repassar o equivalente a essas remunerações ao governo de Havana tem sido utilizado como pretexto para a mídia brasileira qualificar os profissionais cubanos como “escravos” do regime socialista.“Não é um programa para assistir à população, e sim, para repassar o dinheiro para Cuba”, afirmou o presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), Geraldo Ferreira, em entrevista para a TV Bandeirantes.
Por sua vez, Eliane Cantanhêde, da Folha de S.Paulo, escreveu que os cubanos chegaram ao Brasil em “aviões negreiros”. Para Reinaldo Azevedo, colunista da revista Veja, os médicos caribenhos são “escravos de jaleco do Partido Comunista Cubano”. Todavia, no final da década de 1990 – quando Fernando Henrique Cardoso era presidente e José Serra, ministro da Saúde –, a publicação da família Civita apoiou a vinda de profissionais cubanos para atuar em alguns municípios brasileiros.
Ora, a não ser que se queira confundir a população e direcioná-la para determinada linha de pensamento, é difícil entender todo esse imbróglio promovido pela grande mídia sobre o repasse financeiro ao governo cubano. Afinal de contas, os médicos em questão são funcionários públicos, não atuam no setor privado. Em Cuba não existe a profissão autônoma de médico, pois ao contrário de nosso país, na ilha caribenha a saúde ainda é concebida como um direito a que toda população deve ter acesso gratuitamente e não se pode cobrar por isso. Como bem frisou o senador Cristovam Buarque, de repente aparecem pessoas que nunca defenderam direitos trabalhistas no Brasil querendo liderar movimento sindical em Cuba. Além do mais, para uma imprensa demasiadamente submissa aos interesses de Washington, não é fácil aceitar que a medicina cubana é uma das melhores do planeta.
Juventude mimada
Contudo, foi nas redes sociais, espaço onde não há limites para a liberdade de expressão, que as reações à chegada dos médicos cubanos foram mais contundentes. Diante de situações em que há a mínima possibilidade de melhoria das condições de vida das parcelas mais carentes da população, os preconceitos inerentes à elite brasileira, escamoteados pela hipocrisia cotidiana, tendem a aflorar. Foi assim com a política de cotas, com o Bolsa Família e com a “PEC das Domésticas” (só para ficar nos casos mais recentes) e não seria diferente com o Mais Médicos.
Para a jornalista Micheline Borges, “as médicas cubanas [negras, em sua maioria] têm cara de emprega doméstica” e não apresentam a postura adequada para exercer a profissão. Pelo Facebook, o médico Rogério Augusto Perillo “denunciou” ter sido demitido pelo prefeito de Trindade (GO) “para dar lugar a um médico cubano”. Segundo Rogério, com a repercussão do fato nas redes sociais, o prefeito teria “reconsiderado” a decisão e mandado readmiti-lo.
Por fim, a foto de um médico cubano negro que foi vaiado por jovens médicas em Fortaleza, publicado pelaFolha de S.Paulo e compartilhada nas redes sociais, talvez tenha sido o exemplo mais emblemático da pueril reação da elite brasileira, em especial da classe médica, contra a vinda dos profissionais estrangeiros. Diferentemente de outras nações, onde são celebrados pela população local, no Brasil os médicos cubanos são recebidos com hostilidade. Coisas de uma juventude extremamente mimada que não suporta ter os seus desejos contrariados.
Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas, Brasil: Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG

As “arautas da branquitude” e o racismo nosso de cada dia

Não sei se o leitor percebeu, mas é o segundo ano consecutivo em que uma repórter vira notícia sendo acusada de preconceito. Em 2012, a jornalista Mirella Cunha, na época repórter da TV Bandeirantes, virou notícia em todo país após entrevistar, em tom de chacota, um rapaz de 18 anos acusado de estupro. O “acusado” (e mais tarde ficou provado que ele não era o estuprador) era negro e a jornalista o constrangeu reiteradas vezes por ele não saber diferenciar um exame de corpo de delito de um de próstata. Alguns meses depois, o Ministério Público Federal da Bahia abriu procedimento e a está processando (junto com a emissora, espero!) por uma lista de crimes que vão do abuso de autoridade até ofensa ao direito da personalidade.
Agora, a bola da vez é a jornalista Micheline Borges (do Rio Grande do Norte), que causou frisson nas redes sociais ao declarar, em um post no Facebook, que as médicas cubanas têm cara de “empregadas domésticas”. Sua primeira reação, ao perceber que o seu furo não era o “de reportagem”, foi desativar seu perfil na rede. O leitor deve estar se perguntando: o que as duas repórteres têm em comum, além de serem louras? Aparentemente, nada. Mas, penso que elas podem ser classificadas como “arautas da branquitude” e, quem sabe, não estão prestando um grande serviço a todos nós?
Sim, caros, um serviço. Esses fatos, mesmo não sendo novidade – porque acontecem todos os dias –, quando repercutidos pela imprensa trazem a possibilidade de refletirmos publicamente sobre algumas facetas da sociedade que para muitos parece etérea, disforme... uma coisa sem sentido que muita gente acredita que foi inventada pelos negros. Pois é. Pode apostar que, contrariando os que acendem velas e incensam a democracia racial brasileira e afirmam, em alto e bom som, que não somos racistas, este artigo vai falar exatamente sobre o racismo nosso de cada dia, de novo! O mesmo que privilegia o padrão europeu de beleza para contratar jornalistas, de norte a sul do país.
Médico preto?
Todo mundo ficou hor-ro-ri-za-do com o preconceito de Micheline contra as médicas da terra do Fidel. Ooooohhh! Assim como leitores, internautas e telespectadores – e até os editores e diretores de redação! – ficaram no acontecimento anterior. Em coro, disseram que são declarações e atitudes preconceituosas contra os negros – fossem cubanos ou aqueles que têm o estereótipo da delinquência... Porém, a discussão que proponho é a de pensar sobre de que exatamente tratam esses eventos. Outro dado interessante é que não vi nenhum órgão da grande imprensa assumir, efetivamente, que esses acontecimentos revelam práticas explícitas de discriminação racial. Peço a você, que lê este texto que, por favor, me envie os editorais da Folha, do Estadão, do Globo ou matéria da Bandeirantes – no caso da Mirella – sobre os eventos. Eu não os achei.
Porém, é preciso me concentrar no caso “Micheline’. Vamos ao post do dia 27/08, última segunda-feira. Ele começa assim: “Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas tem uma cara de empregada doméstica”. Como assim, “me perdoem se for preconceito”? Sim, querida, realmente é preconceito. Mas não temos o que perdoar. Por que você conseguiu extrapolar o preconceito e partir para outro campo, que é o da discriminação. As pessoas fazem muita confusão entre preconceito e discriminação. Preconceito todo mundo tem e arrisco a dizer que é um sentimento inato ao ser humano. Nós temos preconceito contra tudo que é diferente... e isso não é nada demais, desde que você não faça do seu preconceito uma prática discriminatória. Aliás, entendo que assumir que se é preconceituoso é meio caminho andado para não ter preconceito. Já discriminação é quando você utiliza os seus preconceitos para julgar e/ou hierarquizar pessoas e situações. Ter preconceito não é crime, mas discriminar é. No caso, a jornalista (protótipo da “branquitude”, tão procurado pela imprensa de um modo geral) pretende desqualificar – que é umas das mais conhecidas práticas do ato de discriminar – as profissionais da Saúde, por achar que elas parecem empregadas domésticas.
O problema é que para Micheline, médicos/as precisam ter “boa aparência”. Será que eles precisam escrever as receitas com letra incompreensível e vestir jaleco com o nome bordado a mão? Ela continua opost: “Será que são médicas mesmo? Afe, que terrível. Médico, geralmente, tem postura, tem cara de médico, se impõe a partir da aparência... Coitada da nossa população.” Mas, o que essa moça quis, de fato, dizer? Que tipo de boa aparência ela se refere? Para quem não viu as fotos, a maioria dos médicos cubanos que chegaram ao país, é de negros. Parece que para Micheline ter a pele preta significa incapacidade de cursar uma faculdade de Medicina e ser um bom profissional. É como se, para ser empregada doméstica, servem as pretas, mas médica? Sua escrita deixa explícita a sua consciência: aos negros no Brasil, apenas os serviços subalternos, herança quase pétrea dos mais de 350 anos de escravidão. Médico preto? Deus me livre! – já dizia o deputado Jair Bolsonaro (em entrevista sobre as cotas, em 2011), que afirmava que não gostaria de ser atendido por um médico cotista, fosse preto ou indígena.
A “surpresa” de Micheline
E a mais nova “arauta da branquitude”, finaliza: “Será que eles entendem de dengue? E febre amarela? Deus proteja o nosso povo.” Nesse ponto confesso que fiquei confusa: Deus proteja o nosso povo de quem? Da febre amarela, da dengue ou das médicas pretas que parecem empregadas domésticas? Nossa! A questão é que, creio, não estamos diante de uma ativista da Klux-Klux-Klan – ela nem deve saber o que é isso! O triste é que Michelines e Mirellas são, antes de jornalistas, pessoas comuns que por estarem visualmente dentro dos padrões da branquitude – determinados invariavelmente pela grande mídia – acessam redes de comunicação, potencializando opiniões e atitudes que expressam toda a carga discriminatória, alimentada por séculos de fortalecimento dos estereótipos relativos aos negros – e todos aqueles que são considerados diferentes pelo establishment.
Não tenho muitas dúvidas de que a opinião da Micheline e a atitude de Mirella representam o sentimento de pessoas que, assim como elas, fazem questão de se autoafirmarem como “sem preconceito” mas não hesitam em discriminar e achincalhar outros seres humanos pela aparência ou função que ocupam na sociedade. Mais que repensar a formação de jornalistas e da atuação dos veículos de comunicação, acredito que é preciso refletir sobre esta sociedade que, não só produz pensamentos e pessoas deste nível, mas que ainda permite que temas tão complexos e delicados como racismo, discriminação, preconceito e xenofobia não sejam tratados diuturnamente por esses mesmos veículos.
Aprendi muito cedo que não há trabalho pior ou melhor, desde que ele seja digno, e que todas as funções que ocupamos na vida têm um mérito e um crédito. Ser médico, faxineira, engraxate ou cientista não depende apenas da capacidade intelectual, mas das oportunidades que se tem (ou não) ao longo da vida, e que essas oportunidades são proporcionadas (ou não) no seio das sociedades. É por este motivo que penso que o real motivo da “surpresa” de Micheline, ao ver os médicos cubanos chegando ao aeroporto é muito próxima da “certeza” que teve Mirella – quando destratou um acusado, na TV: as duas sabem que no Brasil, o lugar das mulheres negras é o de empregadas domésticas, assim como o dos homens é o de marginais... Espero, sinceramente, que os médicos cubanos (argentinos, uruguaios, alemãs, vietnamitas ou marcianos) saibam menos sobre dengue, febre amarela, diarreia e desnutrição, e mais sobre ética, respeito às diferenças, sensibilidade social e boa vontade para com os nossos doentes.
Rosiane Rodrigues é jornalista e pós-graduada em Educação para as Relações Étnico-raciais em 03/09/2013 na edição 762